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quinta-feira, 2 de julho de 2015

Gomos de uma Existência

I (Primeiro Gomo)

Alfarroba. Do anoitecer pálido nada sobra. O cavalo da noite varre as sombras da rua e ilumina a praceta onde se sente o hálito de uma atmosfera sórdida. Os meus olhos, cansados de tanta nudez viva, observam no asfalto de um candeeiro mortiço a figura recortada de um homem que se senta na iminência parda de um banco equestre. Espreito-lhe o rosto subornado pela velhice e descubro no seu olhar o brilho racional da comicidade e a da ironia bastarda. Entre os seus lábios finos dança a cigarra meia calada de um cigarro meio morto. Veste um casaco com gola de pele, uma camisa de flanela e umas calças coçadas de ganga. Olhamo-nos como se fôssemos a teoria de uma conspiração falhada. Levantei-me e, sem que a flacidez dos músculos me detivesse, aproximei-me cauteloso.


II (Segundo Gomo)

A proximidade raspou no meu olhar um rosto anguloso, chupado pelos cânticos dos pássaros desvairados. O cabelo, negro como as noites mais profundas, espalhava-se revolto e pendia, levemente, sobre a testa, alta e soberana. Os olhos vítreos, presos em algum vestígio memorial, fundiam-se com a longevidade do tempo. A suave cadência dos meus passos não lhe sobressaltaram a expressão vadia.
- Posso sentar-me?
- Para quê?
- Para esventrar o silêncio da noite.
- E se fosse parir?
- Talvez seja melhor. O sentido da vida é outro.
- A vida é uma cruz nas migalhas da nossa viagem temporal.
Como um sopro que se esvai nas dobras de uma onda felina a sua voz perdeu-se na escultura da sua densidade emocional. O seu olhar, em reflexos violáceos, escapou-se, por breves instantes, para onde as fronteiras são hipnoses imateriais. À distância não me refreou o ímpeto de rasgar o manto esquelético que parecia implantado entre o desejo de penetrar o escudo da vida que, ante mim, floria murcho e o meu instinto de cabra cega.


III (Terceiro Gomo)

O diálogo da vida pode ser monótono e, a brevidade do seu sumo, o prazer descascado de uma ironia metálica. Decifrar a riqueza de uma monotonia é encontrar nas profundezas de uma alma fictícia o volume da sua essência. Escapei às dúvidas do verbo ser e sentei-me a seu lado. Não se mostrou incomodado. Apagou o seu cigarro e projetou-se nas trevas da sua existência. Encolheu-se no banco, os seus olhos pareciam duas fontes de imagens suculentas. A violência do silêncio foi digerida pelas melodias de notas forradas de pranto imaginado.
- A minha infância foi leve e curta. Durou enquanto o riso foi original, enquanto não descobri que o tempo é uma região obscura onde os abraços das suas raízes são labirintos de medo ou de névoas que se aprendem a dissipar com a nudez do ritmo racional. A adolescência foi uma liana na floresta do desconhecido. Criei aparições, inventei imagens de um futuro que se revelou em tranças de mistérios e de promontórios de mar revoltado. Não me recordo da idade adulta.
Endireitou o corpo, imobilizou-se como uma estátua, e, nos seus lábios finos, onde havia frieza, desnovelou-se a cadeia sincopada do cinismo. Olhei para as águas do lago que refletiam a luz prateada de uma lua cheia que esfaqueara, sem dor, a multiplicidade caótica da noite sórdida. Um mocho piou, um lobo uivou.


IV (Quarto Gomo)

A noite é um fascínio, a vida de uma interrogação é um algarismo sem dicionário. Descobrem-se os seus sinônimos na ravina dos seus conceitos. Os pensamentos que me sangravam o poiso luarento de uma sequência imaginária de cenas insaciáveis foram, rispidamente, decepados pela frescura mórbida de umas gargalhadas que incendiaram a noite com os prazeres de uma festividade inédita. A claquete da sua voz suspendeu-as.
- Sou filho do silêncio e da razão, sou o futuro de todas as memórias que vestem este corpo de melancolias inóspitas.
- Que memórias, que tempos as vestem?
- Não sei, desconheço a trivialidade do seu consumo em leitos de perfume. Cada passo que dou é um vestígio lunar que pontifica na natureza do meu refúgio mais solene.
Nada mais disse, refugiou-se entre a solidão de um peso e a atmosfera híbrida do seu convento verbal. Levantei-me. Vagabundei, um pouco, pela praceta. Vasculhei a noite e as cores do seu humanismo solitário. Observei o bailado das nuvens que revelavam no seu passeio discreto alterações atmosféricas que se casariam com o hálito noturno. Observei-o de vários ângulos. Parecia ter adormecido. No entanto, os seus olhos luziam, parecendo os faróis de um temporal na calma suicida de um novelo sufocante. Sentei-me a seu lado. Não se moveu, não deu pela minha presença. A súbita obscuridade que abraçara a noite transformou-o em uma espécie de estátua cujos contornos fustigavam a embalagem da sua vida.


V (Quinto Gomo - Último)

A noite é um prazer dócil de se viver, mesmo se nuvens grávidas de silêncio nos enviam as suas dores de parto ao parirem uma chuva miudinha, infantil, de tão fresca no ato de nos enfeitiçar o corpo de andarilhos. Esquadrinhei a praceta com o olhar desprendido de quem nada reconhece. Recolhi a filosofia de nada sentir sentido tudo o que se desprendia do seu corpo, agora hirto, olhos chamejantes fitos em um horizonte que as pelejas do seu pensamento descortinavam por entre as brumas da sua inocência instável. Relâmpagos faiscaram, cortaram-me a fixidez do olhar que se vestiu de espanto ao deparar com um corpo feminino, noturno na sua nudez, felino na riqueza escultural do seu caminhar e uns olhos que, de uma intensidade luminosa, pareciam duas estrelas fugidas do cosmos cintilante. Aproximou-se, com a mudez do seu ritmo corporal, daquele estranho que me cativara os sentidos e, com a desenvoltura de uma amante, acariciou-lhe os cabelos rebeldes, aninhou a sua cabeça entre os seus seios entumescidos, beijou-lhe os lábios cerrados e com um abraço forrado de carinho ergueu-o, levando-o para o interior de uma névoa, entretanto, surgida do nada. Um estranho perfume envolveu-me, como que me despindo da vida. A chuva bebeu-me o corpo, a névoa desfez-se e senti uma estranha solidão a embebedar o hálito noturno. Alfarroba. Onde fica, onde estou? Não sei, talvez, na imaginação invisível de um corpo secreto. A lua cheia, o lago de águas prateadas. Despi-me e, sem tristezas, penetrei, profundo, na melodia serena das suas águas.❞R Cresppo ☧


Bellaria, 02 de Julho de 2015. 20:54:39


por O Abre Aspas

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