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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

O DESGOSTOSO AMOR DE NÃO SE TER

Sentado, em um banco da piazza Marcianò, observo a elasticidade da vida que passa, zumbindo, diante dos meus olhos. Consulto o meu velho Swatch. São horas de me encaminhar para a Vinoteca Foschi. Apanho em minha bolsa tiracolo de lona meu já ultrapassado celular, ligo-o e ponho-o a tocar Smiths e, sem pressa, tenho tempo, levanto-me e caminho por entre árvores sem idade, por entre corpos que dialogam, em conversas banais, em conversas amorosas. Desço pela Via Muggia e, após caminhar por algumas quadras da centenária comuna, entro na livraria Frascaroli Marco, fronteira à vinoteca, e consulto o espaço dedicado aos livros de música erudita. O meu velho Swatch apressa-me. Entro no prédio da vinoteca e dirijo-me ao seu terceiro andar, onde se encontra a sala de reuniões. Ao entrar, a verdade estremece-me o corpo, aumenta-me o ritmo cardíaco – Angiolletta, a sommelier. Ao vê-la, deixo de ver; o mestre enólogo e os demais enófilos são apenas esculturas de carne viva que se enclausuram em um quadro vivo de aparências teatrais. Os belos olhos dela, de uma claridade assombrosa, encontram-se com os meus, acenam-me sorrisos e, eu, corpo dançarino, envio-lhe uma saudação repleta de alegrias que, verdade seja dita, só este meu sentimento de jovem seduzido compreende em toda a sua verdadeira extensão. Neste entorpecimento amoroso, o enólogo é um ruído de fundo, uma voz que nos explica o que não sei explicar, um relatório qualquer que me desgosta o gosto da sua presença divinal. O tempo não tem obstáculos, mas a minha timidez é um obstáculo. A sineta soa, aos meus ouvidos, como uma canção de embalar. Saem todos, saio, eu, sai, ela, saímos para o mundo da consciência aberta, fechando os meus desejos, ocultando, mais uma vez, a razão das minhas razões. Junta-se, alegre, ao seu grupo habitual e, eu, pego no meu corpo, sem destino, e fujo, literalmente, do brilho que me encadeia os passos, lentos e tensos, e escondo-me, em um canto da piazza Giuseppe di Vittorio. Abro a minha bolsa e, dela, retiro a epopeia “Tragico tascabile” do majestoso Guido Ceronetti. Por entre seus poemas sigo por onde nunca seguirei. Eis-me inteiro e dividido entre o gosto de ser amado e o desgosto de não o ser.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 24 de Fevereiro de 2023 - 16:43:39











por Renato Cresppo

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A DOR DE AMAR É

Nas lareiras do passado
ardem palavras de sebo
lavrando no seu recado
as ideias claras de Febo
que, em anúncios de sede,
lavam a fome dos medos,
pálidas bocas de rede
que pescam os seus segredos
e desovam argumentos
no cosmos dos seus tormentos.

Com as lâminas da dor
se pincham velhas memórias
e com a salsa do amor
se dança ao ritmo das estórias
que rabiscam as comédias
dos que partem sem Orfeu
e dos que ficam sem rédeas
no jardim de Prometeu
onde o que fogo é
salga a dor de maré.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 18 de Fevereiro de 2023 - 13:49:32












quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

NO RITMO BAMBA

Cada palavra que me imagina
Soletra o samba da vida,
Redige a nota concreta
De uma sequência filmada,
Filme do desencanto
E da travessia louca
Que são estes passos
De raízes firmes
E de frutos selvagens
Que degustam a dor
E fazem do prazer
O doce ritmo do amor.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 08 de Fevereiro de 2023 - 14:32:25












terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Nas teias de uma alucinação delírica - V - O COPO CHEIO DE UM CORPO VAZIO

Este copo cheio de ti
Saúda a memória do teu corpo em festa.
Bebo-o, trago a trago,
Como se fosse os pingos do teu cabelo molhado,
Como se cada gosto seu
Fosse o desgosto do teu aceno.
As lágrimas do teu olhar
Bebidas por estes olhos de gelo,
Fogo que não se vê. Ardem.
São álcool que queima este silêncio.
Bêbado de ti, encharco o tempo,
Este tempo sem ti, sem o gosto deste copo vazio.
Gota a gota, perdeste o sabor,
Mas em cada lágrima que ouço à noite
Vai um rio de nada. 
Um corpo de voz.
Um copo de foz.
Uma foz de tempo.
Vazio. O corpo.
Vazio. O copo.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 07 de Fevereiro de 2023 - 13:13:32











sábado, 4 de fevereiro de 2023

Nas teias de uma alucinação delírica - IV - A FLOR DO TEMPO

Sempre que caminho pelas ruas do tempo, sinto num recanto interior, muito bem escondido, um pequeno jardim com uma única flor plantada pelos filamentos da idade. Umas vezes acendem-se, outras, apagam-se. Nas esquinas do tempo, onde o passado anseia pelo futuro, há um osso de saudades que me recuso a roer. Nunca nos terminais do destino encontrei razões para que a flor se tenha recusado a florescer. É um jardim triste, apesar da muita música com que festejei a alegria de a ter comigo. Embora o tempo seja eterno, eu não o sou. Será que ela o será? A velhice não me apoquenta. A flor provoca-me com tratados de incompreensão.

O corpo vai adormecendo, pouco a pouco, mas ela continua, interna e sorridente, perante o desespero de não encontrar a semente justa que seja o alimento que a desperte e me emagreça a tristeza que me enfeita os lábios das dores, flocos de neve que se vão derretendo, ao sentirem os fios solares soprarem-lhe as últimas gotas de vida. Talvez, eu seja um floco de neve que, ao derreter-se, liberte, finalmente, a glória perfumada desta flor que me desconhece e que não chora, sendo um sonho que a morte do meu tempo conduzirá, certamente, ao seu florescimento triunfal. Porém, eu não sou quem pareço, e a flor não o sabe. A bebedeira do meu último suspiro será a última melodia que remará com a brisa do tempo.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 01 de Fevereiro de 2023 - 09:01:24












quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Oblívio no engano VII - OS DESCENDENTES DO TEMOR DA VIDA

Pertenço ao cantinho dos vultos que estendem a mão ao Futuro, porque o passado os transformou em descendentes do temor da vida. São apenas números no arco do triunfo dos endividamentos, santificados pelo ostracismo a que são vetados todos os que não se abrigam nas cavernas dos que sopram os ventos da sua estabilidade, graças à instabilidade dos que professam as magias falsas da salvação cotidiana. Cansei-me das cantigas dos que louvam as louva-a-deus dos mandatos irrefletidos nos espelhos das vaidades individualistas dos que fingem que são, o que não sendo, passam por ser o livre arbítrio das mentiras que cheiram às lixeiras das verdades em que já ninguém acredita, a não ser eles mesmos, agarrados que estão, aos fluídos endividados das suas dúvidas abstratas, defendidas pelos carrapatos das ignorâncias ideológicas e pelas realidades que são o monte Evereste da falência coletiva. Não importa afirmar que não somos o que éramos noutros tempos, importa sim avaliar o que seremos se continuarmos a ser a fundição dos planos, fundidos nas sepulturas da mendicidade coletiva no reino dos reinados abstratos. Pouco me importam as vigílias dos cérebros empedernidos na vigência de um reino simulado. O que se aclama não são realidades, mas abstrações de cérebros conflituosos e de afrontamentos paralisados pela ignorância de uma fragrância luminosa. Quando todos acordarmos para a claridade da nossa sina, saberemos ouvir no fragor de um desmoronamento, o quadro simbólico de um retângulo ridículo, esfumando-se na espuma da inexistência. Será a água e não o azeite que virá ao de cima. Eis a verdade de uma outra verdade que a verdade não deixará omitir.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 01 de Fevereiro de 2023 - 09:01:24











por Renato Cresppo

Lampejo Diário - II

Viver
Não é a ponte do escurecer.
Passeio de passos leves,
Voos secretos de asas breves,
Risos de crianças adultas
No poente das lágrimas ocultas,
Sonhos que se entrelaçam
Entre margens que se abraçam
Sem que os ventres maduros
Fujam por entre os segundos obscuros,
Sem que o rio, aves corredoras,
Lave as suas águas em tinta rubra,
Para que se conservem límpidas e acolhedoras
Aos corpos de quem o descubra 
E quem nele queira marulhar
Com as dores do luar.
E acordar,
Com a ponte em outro lugar.❞R Cresppo ☧

Bellaria, 01 de Fevereiro de 2023 - 16:11:58











por Renato Cresppo